O tempo, a palavra e os ossos

Relógio que pertenceu à Hilda Hilst. Ele ficava na parede em frente à porta de entrada da sua chácara, a Casa do Sol. É o primeiro gatilho desse texto.

É mais tarde
Do que supões…
Vão bater as badaladas.
As cirandas atrasadas e infinitas que compõem um coro de sonhos e distrações.
Tules e poás que pairam no ar, o perfeito esconderijo para os segredos da infância.
É mais tarde do que supões… correm as crianças e os coelhos, um burbúrio que entala em minha garganta. Aqui, entre faringe e laringe, o tempo e a palavra. Um fluxo.

O tempo e a palavra. Um fluxo.
É mais tarde do que supões, mas ainda assim os caminhos tracejados, linhas e rugas, estão lá. Lá, numa ânsia, numa fome, por pés inquietos que vêm e vão como ondas que sempre chegam e sempre partem, como os rostos dos desconhecidos que amanhã se perderão entre tules e poás e a infância guardada em fragmentos. Como ondas, chegando e partindo.
É mais tarde do que supões.
Está ali, a dúvida.
É mais tarde do que supões… E então os fantasmas se erguem contra os milésimos e segundos.

E então os fantasmas se erguem contra os milésimos e segundos numa dança desconexa e de desencontros.
Numa dança que puxa em seus braços as lamúrias
os risos
o esquecimento.
Um grande conjunto de rodopios de horror e fascínio. Infinito. Infinito.
É mais tarde do que supões… Os fantasmas sabem e por isso dançam e assombram, um grande descompasso.

Um grande descompasso.
É mais tarde, agora.
Quando os fantasmas voltam a se deitar e o que sobra somos nós e nossos tesouros, fábulas e sonhos revividos mil e uma vezes.
O que sobra são os ossos
o cálcio
estórias enraizadas que quando lembradas não possuem mais sentido, até que se estalam os ossos. E quando se estalam, volta o burbúrio que se prende na garganta
nos ossos
meus ossos.
Um grande descompasso.
O tempo e a palavra.
Os ossos que guardam e aguardam.